"Mãe, a senhora precisa se libertar destas pessoas. A senhora não deve nada pra elas. Não tenha medo de encarar esse povo que nunca limpou a própria privada."
Solitária conta a história de duas mulheres negras, Mabel e Eunice, mãe e filha, que "moram no trabalho", um condomínio de luxo situado em localidade não nomeada, mas que pode ser qualquer grande cidade brasileira. Eunice, a mãe, é testemunha-chave de um crime chocante ocorrido na casa dos patrões. Mabel, a filha, constrói o caminho que levará à elucidação do crime e à libertação de ambas.
Em prosa direta e ágil, voraz e assertiva, Eliana Alves Cruz remexe o imaginário do trabalho doméstico no Brasil, ainda tão vinculado ao mundo escravocrata, e o relaciona a questões contemporâneas fundamentais, como o debate sobre ações afirmativas, a ascensão da extrema direita e a pandemia.
Testemunho de uma crucial mudança de sensibilidade no espírito de nosso tempo, Solitária dá provas do quão urgente se tornou elaborar – sem meias-palavras – não apenas a história, mas as sobrevidas da escravidão colonial. E, ao fazê-lo, mostra como é possível enfrentar o desafio moral e ético de abordar estas experiências de vida sem replicar narrativamente a violência a que estão sujeitas nem reencená-las sob a égide de qualquer pacto sub-reptício de subalternidade. É um romance libertação.
Fiz uma substituição para o #BingoLitNegra (explicarei melhor no post com o resultado do desafio) e incluí Solitária na minha lista para esse mês. O poder desse livro tão curtinho pode não ficar evidente no título (que faz muito sentido!), porém estou feliz por ter lido.
O contraste entre Mabel e Eunice é perceptível. Duas gerações diferentes, com visões diferentes, e com uma infância/ adolescência diferente. A Mabel só pôde ser quem é por conta da Eunice, seu amor de mãe, sua luta incansável para a filha ser diferente. Já Eunice, só pôde torna-se quem queria pelo exemplo dado pela filha, pelos acontecimentos duros, mas muito pela sua força. Eu amava como elas se relacionavam, mesmo vendo os momentos de convivência sob um teto tão arisco terem sua dor, suas limitações e seu distanciamento.
Todo o relacionamento delas, as escolhas, os únicos caminhos, são entrelaçados pelas disparidades de renda, sob a ótica racista da sociedade e dos patrões. É terrível ver como Mabel, Gilberto, João não podem ser crianças quando deveriam, o silêncio imposto necessário para garantir o emprego dos pais.
A forma narrativa que o livro foi organizado é incrível. Quando o ponto de vista é da Mabel, temos parte de uma casa ou apartamento como títulos do capítulo, então encontramos Cozinha, piscina, escritório... e isso se repete na segunda parte, onde vemos tudo pelos olhos da Eunice. Na terceira são os diversos tipos de quarto quem servem de narradores e nos contam como a vida de Mabel, Eunice, Cacau, Jurandir, João entre outros foram se desenrolando. Eu amei ver a ligação que esses títulos tinham com o conteúdo de cada capítulo e todo o significado deles.
As referências são muitas: desde as literárias como Conceição Evaristo e Maria Carolina de Jesus, como acontecimentos reais e bem recentes. Temos os episódios mais comentados da atualidade no que se refere ao racismo (trabalho análogo à escravidão, morte do Miguel aqui em Recife) até mesmo episódios que envolvem a pandemina de Covid-19 e a política atual.
E Eliana consegue passar esses momentos muito bem. Tão bem escrito era que, em alguns momentos, eu parava a leitura para respirar e ter coragem de continuar porque sabia o que estava vindo e que veria mais uma triste realidade na próxima cena. O livro é curto e forte, eu indico demais.
Sobre o livro:
ISBN: 9786559212347
Autora: Eliana Alves Cruz
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2022
Páginas: 168
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