terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

RESENHA: A dança da água (Intrínsecos #022)

Por todos os estados Unidos as plantações de tabaco floresceram e trouxeram riqueza aos senhores de escravos durante o século XIX. Ate a exaustão da terra e dos homens. Na Virginia pre-Guerra Civil, quando a bonança começa seu declínio, Howell Walker vislumbra o próprio fim e sabe que precisar de um substituto para administrar os últimos dias de Lockless, sua vasta propriedade. Em um mundo de dualidades tão flagrantes, logo fica claro que seu único herdeiro, Maynard, não tem nenhuma aptidão para essa missão. E mesmo o jovem Hiram , com sua resiliência infalível, não poderia faze-lo - além de filho ilegítimo de Walker, ele é um escravo.
Com o apuro linguístico que o tornou um dos mais notáveis escritores dos Estados Unidos, Ta-Nehisi dispensa o termo "escravo" - Hiram, bem como todos que trabalham nas plantações, são os Tarefas. Sua memoria fotográfica é capaz de guardar detalhes de absolutamente todos os fatos e coisas, exceto uma delas: a própria mãe, que um dia foi vendida e levada para nunca mais voltar.
O pai branco tirou Hiram da plantação e fez dele um escravo da casa-grande, permitindo que entretesse convidados com seus truques de memoria e ate mesmo tivesse aulas com o filho legitimo. Esse reconhecimento ressoa em Hiram como uma esperança silenciosa, logo desfeita quando ele se torna servo do meio-irmão. Ate acontecer o terrível acidente no rio.
Hiram tem a vida poupada por um poder misterioso e ate então oculto dentro de si, uma herança materna que se perdera junto com as lembranças da mulher que o concebera. Hiram é um Condutor, tem a habilidade sobrenatural de se transportar de um lugar para outro em questão de segundos, como da Virginia á Filadélfia. Um dom magnifico para quem não é dono da própria vida. Esse chamado ancestral que emanou da água no dia do afogamento, faz brotar no jovem uma grande urgência: ele precisa escapar do lugar que foi seu lar e prisão desde o dia em que nasceu.
Começa aí a inesperada jornada que levara Hiram da grandiosidade corrupta dos senhores de escravos a células abolicionistas infiltradas na floresta; da cova funda da escravidão do sul dos EUA aos movimentos perigosamente idealistas do norte do país. Mesmo assumindo um papel importante nessa guerra clandestina, Hiram não desistira de resgatar a família que deixou para trás quando fugiu em busca de libertar não só sua vida, mas suas lembranças.

Recebi esse livro em meados de 2020, mas somente fui ler em Dezembro e creio ter sido uma boa escolha: fui com um olhar mais preparado depois de ter lido mais livros escritos por pessoas negras. Fui mais preparada, sim, mas doeu mesmo assim.

Hiram é inteligente, tem uma ótima memória e, conforme vai crescendo, fica bastante ciente da estrutura que o cerca. Ele passa por escolhas ruins, traições, violência, descobertas surpreendentes e um processo duro de autoconhecimento e do seu lugar no mundo. Mesmo com a falta de esperança no futuro, certas pessoas se fazem presentes na sua vida e a mudam de maneiras que ele nunca imaginaria ser possível.

A rica construção dos personagens é um dos pontos mais fortes da obra. O conhecimento e a força de cada um, o passado doloroso, o presente difícil, as perdas e a esperança em cada experiência inspiram não somente o Hiram, mas também ao leitor. Dentre eles destaco Thena (o seu amor materno por Hiram me tocou muito), Harriet (inspiração pura) e Kessiah. Outros como Corrine e White me davam um misto de admiração e medo, pois nunca se sabia quais eram os seus objetivos e muitos dos seus métodos não me agradavam.

Uma discussão que me tocou foi sobre o significado da liberdade para um povo escravizado naquela época. Vários exemplos de como essa liberdade era frágil nos são apresentados e acabamos entendendo, embora não apoiando, as escolhas de alguns dos libertos. Mesmo alforriados, o estigma do escravo não se extinguia e achar um local seguro era muito raro, mesmo quando a escravidão física não mais existia, seguia em curso a psicológica.

Além da revolta óbvia em relação ao sistema escravocrata e aos abusos infligidos , é duro perceber certas nuances. Eu, por exemplo, nunca tinha me atentado como era difícil manter uma família negra unida. Como eram tratados igual a objetos, frequentemente eram vendidos e separados sem nenhum remorso. Claro que em algum momento eu li sobre esse fato, só não tinha compreendido a magnitude da dor que poderia causar, o medo constante, a imprevisibilidade ainda mais acentuada do amanhã. Foquei tanto nos abusos físicos e não percebi o quanto emocional e psicologicamente custava.

Eu gostei da escrita do Ta-Nehisi Coates, achei envolvente e até mesmo poética em vários momentos. O toque sobrenatural é um recurso que deu muito certo e a descrição de como ocorria a condução foi bastante forte. Fiquei tensa boa parte do livro porque aguardava o momento de tudo dar errado e de uma nova sessão de sofrimento chegasse a Hiram. Ainda que algumas passagens pudessem ser mais rápidas, e outras - como o final - merecessem mais atenção na minha opinião, não chegou a atrapalhar minha experiência com o livro. Creio ser uma ótima estreia para o autor.

Sobre o livro:
A dança da água (Intrínsecos #022)
ISBN: 9788551006368
Autor: Ta-Nehisi Coates
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Intrínseca
Ano: 2020
Páginas: 400

Nenhum comentário: