segunda-feira, 10 de maio de 2021

RESENHA: A palavra que resta

Neste primoroso romance de estreia, acompanhamos a trajetória de Raimundo, homem analfabeto que na juventude teve seu amor secreto brutalmente interrompido e que por cinquenta anos guardou consigo uma carta que nunca pôde ler.
Aos 71 anos, Raimundo decide aprender a ler e a escrever. Nascido e criado na roça, não foi à escola, pois cedo precisou ajudar o pai na lida diária. Mas há muito deixou a família e a vida no sertão para trás. Desse tempo, Raimundo guarda apenas a carta que recebeu de Cícero, há mais de cinquenta anos, quando o amor escondido entre os dois foi descoberto. Cícero partiu sem deixar pistas, a não ser aquela carta que Raimundo não sabe ler – ao menos até agora.
Com uma narrativa sensível e magnética, o escritor cearense Stênio Gardel nos leva pelo passado de Raimundo, permeado de conflitos familiares e da dor do ocultamento de sua sexualidade, mas também das novas relações que estabeleceu depois de fugir de casa e cair na estrada, ressignificando seu destino mais de uma vez.
A magnitude deste romance está, primeiro, na invenção de um enredo poderoso sobre a dor da exclusão – a exclusão da miséria, do analfabetismo, da solidão, do preconceito. E se completa com a força da linguagem que molda a história, palavra a palavra, na tradição dos grandes narradores brasileiros. – Socorro Acioli, autora de A cabeça do santo

Stênio fez uma estreia maravilhosa com A palavra que resta e a vida sofrida de Raimundo soa muito real, porque, em suma, ela é.

Raimundo personifica a dificuldades de ser gay numa época e ambiente onde era impensável admitir essa orientação. Encontramos ele se descobrindo, por mais que o livro não se foque muito nisso, mas sim nas reações desencadeadas pelo relacionamento com Cícero.

A visão da época sobre a sexualidade, como as palavras da família e das pessoas que cruzaram o caminho dele se faz presente nas tentativas de esconder e se inserir no seu círculo de trabalho e social. Muitas vezes ele reprisa as falas preconceituosas, fazendo que Raimundo nutra autodepreciarão e não viva sua vida com plenitude. É muito verossímil, pois creio ser a realidade de muitos LGBTQIA+, principalmente daqueles sem condições de se afastar de onde não são aceitos. Também aborda o relacionamento familiar e quanto, às vezes, é possível se sentir verdadeiramente querido com as pessoas que te acolhem como você é.

Outro ponto a se destacar é como Stênio desenvolve todo o mistério do conteúdo da carta e como usa isso para mostrar outra situação bastante comum, especialmente em cidades do interior: o analfabetismo. Raimundo teve seu acesso a educação negado por ter que trabalhar junto ao pai e por conta disso, passa anos sem saber o que Cícero queria dizer. É bem emocionante ver como as palavras e as frases aprendidas vão dando sentido aos dias dele e com certeza foi especial acompanhar essa evolução.

O livro foi escrito seguindo a tradição oral e creio ser uma decisão muito acertada. Me senti mais próxima dos personagens e todas as dores pelas quais eles passam porque a narrativa se aproxima de uma realidade que vivencio sendo do interior. Então quando Raimundo fala das incertezas, do amor e das perdas imagino estar escutando uma conversa do meu vizinho, ou de um parente, ou de um conhecido de um amigo. Me parece real. Imagino que vocês também se sentirão assim.

Sobre o livro:
ISBN: 9786559210282
Autor: Stênio Gardel
Editora: Companhia das letras
Ano: 2021
Páginas: 156

Nenhum comentário: