segunda-feira, 3 de agosto de 2020

RESENHA: Minha sombria Vanessa

Elogiado por Gillian Flynn e considerado um dos grandes livros de 2020, o romance de estreia de Russell explora as dinâmicas psicológicas de um relacionamento entre uma adolescente e seu professor.
Em 2000, Vanessa Wye é uma estudante solitária de ensino médio. Talentosa e com o sonho de ser escritora, Vanessa diz não se importar de ficar sozinha, principalmente quando seu professor de inglês, Jacob Strane, um homem de 42 anos, começa a prestar atenção nela, elogiando seu cabelo, suas roupas e lhe emprestando alguns de seus livros favoritos ― como Lolita, de Nabokov. Antes que Vanessa perceba, os dois embarcam em uma relação e a jovem acredita que o professor a ama e a considera especial.
Mais de uma década depois, uma ex-aluna acusa Strane de abuso sexual, e Vanessa começa a questionar se o que viveu foi realmente uma história de amor ou se não teria sido ela também uma vítima de estupro. Mesmo depois de tantos anos, Strane ainda é uma presença constante em sua vida. Como ela seria capaz de rejeitar o que considera seu primeiro amor?
Alternando entre presente e passado, o livro justapõe memória e trauma ao entusiasmo de uma adolescente descobrindo o poder do próprio corpo. Instigante e impossível de largar, o livro retrata com maestria a adolescência conturbada e suas consequências, para refletir acerca de liberdade, consentimento e abuso. Escrito com intimidade e intensidade assustadoras, Minha Sombria Vanessa capta brilhantemente os costumes culturais em transformação que guiam nossos relacionamentos e a própria sociedade.

Aviso de conteúdo sensível: abuso e pedofilia. 

Quando lemos a contracapa do livro e tem "esta não é uma história de amor" podemos banalizar a frase e achar que nunca pensaríamos em definir essa história assim. Porém, ao começar a leitura, entendi perfeitamente o porquê do aviso. Nossa protagonista acha que viveu sim um primeiro amor marcante e ela tenta se convencer disso o tempo todo.

O impacto maior para mim foi ver tudo pelo ponto de vista da Vanessa. A autora me parece ter pensado muito como dar voz a ela de forma que os leitores sentissem os motivos pelos quais ela foi enganada e o que torna tão difícil admitir o que sofreu. Então, no começo, quase caí no mesmo erro que ela: acreditar no Strane, duvidar se ele era esse monstro todo. Meu alívio foi não me apegar muito a esses pensamentos e buscar sempre as entrelinhas nas suas falas. A manipulação que ele exerce sobre ela é forte, e feita de uma maneira que a envolve através de elogios, "conselhos" e uma ideia que ela é mais madura que as outras garotas e, portanto, especial. E por isso não posso cobrar a mesma clareza da Vanessa: sou uma pessoa que acompanha de longe, sem envolvimento emocional fora a empatia por ela, não estou fragilizada e sou bem mais velha. Quando encontramos Vanessa dá sim para entendermos como uma garota de 15 anos passou por tudo isso sem se identificar, até a vida adulta, como vítima. E isso torna tudo ainda mais triste.

A Vanessa é uma personagem complexa e me despertou muitos sentimentos. Antes de tudo acontecer tinha simpatia por sua solidão e pensava no quanto ela precisava de ajuda e em outros, especialmente em sua fase adulta, me pegava pensando se ela queria mesmo superar. Esse estranhamento com ela creio ser um ponto também levantado pela autora: quanta empatia, quanto estamos dispostos a acreditar em pessoas que não conhecemos ou gostamos quando casos assim vêem a tona? Me solidarizei com cada experiência e sonho perdido por ela, pelo futuro modificado e quebrado, pela solidão insistente, mas quantas meninas e mulheres relatam o mesmo tipo de sofrimento e escolhemos duvidar? Quantas delas tem sua própria personalidade afetada de maneira que não conseguem sentir uma ligação emocional saudável com qualquer pessoa, mesmo sendo familiar e de amizade?

Foi um relato de uma perspectiva singular, onde precisamos deixar nossos preconceitos de lado, nossas ideias pre estabelecidas, e entendermos que a compreensão de que foi abusada pode demorar muito, que o sentimento de culpa sempre persegue quem passou por esse tipo de situação e cada um tem seu tempo para encarar e, com ajuda, superar. Não é somente sobre o abuso em si, é sobre fatores e consequências, sobre tentar seguir em frente e ser constantemente arrastada para o passado.

É um livro que deixa o leitor desconfortável e inseguro, e a alternância entre os capítulos narrados em 2017 e os iniciados em 2000 parecem enfatizar esses sentimentos. Não temos visão completa da trama, vamos construindo o passado de Vanessa aos poucos enquanto vemos como ela está anos após tudo acontecer. É doloroso, dá raiva e pena, senti a injustiça e as contradições dela, e creio que a autora conseguiu chegar onde queria. É um livro necessário, mas não é fácil, não é para distração, é para refletir, criticar e entender. 

Sobre o livro:
ISBN: 9788551006276
Autora: Kate Elizabeth Russell
Tradução: Fernanda Abreu
Editora: Intrínseca
Ano: 2020
Páginas: 432

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